A nossa cultura não se <i>troika!</i>

Nuno Gomes dos Santos

Em 1970 e antes, e falo desses anos porque deles tenho lembrança vívida, havia um grupo de malta porreira, sobraçando violas, que andava por esses portugueses caminhos afora, fintando «os olhos e os ouvidos do imperador», a cantar, afinados mais pelo diapasão das ideias do que, por vezes, pelo acerto das notas, não sendo assertiva nem globalizante esta reportagem e nem isso é, para o caso, importante, a mandar recados, a tocar sinos, a desfraldar bandeiras, a avisar a malta.

Depois foi o tempo das cantigas de acelerar, de adubar Abril, de derramar pelo país a mensagem nova do novo que Abril abriu. Porém, passaram, três/quatro décadas sobre esse tempo da viola heróica, da arma cantigueira das palavras.

Os intérpretes das cantigas desse tempo foram à sua vida, construiram cantigas de percurso, fossem elas resvalando para uma moda predominante ou ousassem ter a a sua digna assinatura de origem.

E eis que, de repente, me vejo numa grande praça de Lisboa, entro no palco, olho mais de quinze mil pessoas ansiosas e participantes, estou com Carlos Mendes, Carlos Barreto, Filipa Pais, Samuel, Francisco Naia, Zeca Medeiros, Chaby, Fanhais, Mário Mata, muitos outros, mais novos e não menos atentos e empenhados, minha nossa, isto está a acontecer em 2012?!

Estava a acontecer. Aconteceu.

Declaradamente se via e ouvia que o som era outro, o apoio de palco muito mais maduro e eficaz, a postura de cantigueiros e dezedores mais segura e madurada. Porém, era outra vez a Cultura a mostrar-se, portuguesa e revolta, a dizer que «há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não».

E então olhei, comovido e triste, feliz e encantado, a Maria do Céu Guerra, o Álvaro Faria, todos, muitos, cúmplices e solidários na defesa da dignidade de um país e de um povo que não se vergam, antes se afirmam, contrariando imposições miseráveis, situações de penúria, destinos inflexiveis e castrantes.

E disse, entristecido por me ver no regresso ao passado que não queria, «estamos vivos». E cantei «somos mais, gente fixe».

E apostei, de novo, na Cultura de resistência que quer voltar a ser Cultura de consagração. Quando a política for outra.

Quando as pessoas deixarem de ser números numa estatística de mentira com não sei quantos por cento a figurarem em listagens onde a palavra gente, as designações homem, mulher, criança, velho, felicidade, povo, possam ser ditas com as letras todas com que se soletra a palavra vida.



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